O Bacen afirmou por meio dessa normativa que “as chamadas moedas virtuais” são denominadas como “unidade de conta distinta das moedas emitidas por governos soberanos”.
O marco regulatório das negociações com Ativos Digitais Criptografados (Lei nº 14.478/2022) entrou em vigor no dia 20 de junho de 2023. No dia 13 do mesmo mês, o Decreto nº 11.563/2023 definiu que o Banco Central do Brasil (Bacen) será a autoridade a exercer a fiscalização e estabelecer os parâmetros de funcionamento das empresas que prestam serviços com tais ativos. No entanto, resta a questão de saber o que isso muda de fato para o mercado e para os usuários.
A primeira coisa que há de se ter em mente é que até 2024 tudo deve permanecer igual. O fato é que o Bacen ainda irá regulamentar a matéria com a devida calma. A autarquia afirmou, portanto, que deve de abrir uma consulta pública até o final deste ano de 2023.
Enquanto o Bacen não define os pormenores, vamos nos ater aos detalhes da regulação. Vale considerar que a Lei nº 14.478/2022 não regula o Bitcoin e outros Ativos Digitais Criptografados.
Essa norma cuida tão somente acerca do funcionamento das empresas que atuam no mercado custodiando ou negociando tais ativos. Nesse sentido, o art. 5º traz que a “prestadora de serviços de ativos virtuais” deve ser pessoa jurídica que preste tais serviços em nome de terceiros. Esse dispositivo, portanto, exclui as transações entre pessoas físicas sem intermediários ou entre pessoas jurídicas em nome próprio.
Ativos Digitais Criptografados sob o olhar do Bacen
Outro ponto é que o funcionamento e a fiscalização sobre a atuação destas empresas se dariam por ente ou órgão da Administração Pública Federal a ser indicado por Ato do Poder Executivo.
Isso sucedeu com o Decreto nº 11.563/2023. Esse ato normativo conferiu as novas competências para o Bacen. Essa autarquia é que irá “autorizar e supervisionar as prestadoras de serviços de ativos virtuais” bem como regulamentar a prestação de serviços com os Ativos Digitais Criptografados. Há, porém, a necessidade ainda de o Bacen estabelecer as diretrizes para que a regulação possa de fato ter efeito em sua inteireza.
Sobre isso, essa autarquia especial federal emitiu, em 21 de junho de 2023, uma nota afirmando que “a regulamentação está em construção”. O Bacen pretende “fazer uma consulta pública para ouvir a sociedade antes de divulgar a regra definitiva” e isso só está previsto para ser concluído em 2024.
Diferença entre Ativos Digitais Criptografados e Ativos Virtuais
Antes de adentar nos pormenores do campo regulatório, cabe elucidar o porquê da escolha da nomenclatura “Ativos Digitais Criptografados” feita aqui pelo autor ao invés de “Ativos Virtuais” conforme consta na Lei nº 14.478/2022. Por entender que “Ativos Virtuais” é um termo muito amplo, o qual pode abranger quaisquer ativos surgidos de forma digital ou os analógicos que são convertidos eletronicamente para comporem a uma realidade virtual.
A diferença entre “virtual” e “digital” se remete ao fato de o primeiro ser gênero o qual inclui o segundo (digital). E, por que “criptografado”? A questão aqui é apenas demonstrar que se trata de ativos surgidos no meio digital protegidos por uma determinada criptografia.
Assim, o termo Ativos Digitais Criptografados abarca as espécies criptoativos como Bitcoin, Ether (aqueles sem lastro em outros ativos); as stablecoins como USDCOIN e Tether (com lastro em outros ativos como por ex. moeda fiduciária) e as NFT (Non-Fungible Token).
Entretanto, não se elegeu o termo Ativos Virtuais (“Virtual Assets”) por acaso. Essa é a nomenclatura utilizada pelo GAFI/FATF (“Groupe D’Action Financière/ Financial Action Task Force”) Isso demonstra que a regulação se encontra afinada com entidades de governança cosmopolita trazendo já um “standard” global[1]. Mas, peca por tratar-se de um termo guarda-chuva.
Solução para os Ativos Digitais Criptografados
A Lei nº 14.478/2022 traz o termo abrangente “Ativos Virtuais”. Ela, contudo, estabeleceu parâmetros a fim de que a regulação não abarcasse tudo quanto é ativo negociado em ambiente virtual. O art. 3º menciona no “caput” que será considerado “ativo virtual” a representação digital de valor “que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento”.
No termo “representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos” pode se ter além dos Ativos Digitais Criptografados, as moedas eletrônicas tais como PayPal e Google Pay. Nessa mesma toada, portanto, haveria ainda a possibilidade de incluir as Central Bank Digital Currencies (CBDC).
A solução foi de, no mesmo art. 3º, excluir desse rol de “ativos virtuais” as moedas fiduciárias, sejam elas nacionais ou estrangeiras (inciso I) e tampouco as moedas eletrônicas (inciso II).
O inciso III deste artigo afastou a incidência da regulação aos programas de pontos e recompensas. Isso portanto corrigiu um equívoco que o primeiro projeto de lei para regular os Ativos Digitais Criptografados trazia. O PL nº 2.303/2015 buscava tratar Bitcoin e milhas aéreas como se fossem a mesma coisa.
A Lei também evitou a confusão de representação digital de valor “com propósito de investimento” trazer a ideia de valores mobiliários. Nesse sentido, o inciso IV afastou a possibilidade de a Lei nº 14.478/2022 regular as “representações de ativos cuja emissão, escrituração, negociação ou liquidação esteja prevista em lei ou regulamento, a exemplo de valores mobiliários e de ativos financeiros”. Isso, aliás, se coaduna ao que consta no art. 1º, parágrafo único, desta Lei, pelo qual fica esclarecido que quando o uso de tais ativos for representativo de valor mobiliário, caberá a incidência da Lei nº 6.385/1976.
Competências da CVM
Em outras palavras, o que consta no art. 2º da Lei de Valores Mobiliários continua valendo. Assim, se um contrato futuro ou derivativo lastreado em quaisquer ativos (conforme consta no art. 2º, inciso VIII, da Lei nº 6.385/1976), ainda que sejam Ativos Digitais Criptografados, se estará diante de valor mobiliário.
O mesmo raciocínio vale para uma “Initial Coin Offering” (ICO) que se amolde à um Contrato de Investimento Coletivo. Basta que a ICO preencha os requisitos trazidos no art. 2º, inciso IX, da Lei nº 6.385/1976, ou seja, captação de recursos de investidores com promessa de retorno financeiro por meio de esforços de terceiros ou do próprio empreendedor.
Nesses casos, a oferta pública de tais investimentos dependerá de dispensa ou registro junto à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), como era antes mesmo do implemento da Lei nº 14.478/2022. Isso denota que nada mudou quanto a competência da CVM. Além da própria lei, o Decreto nº 11.563/2023 reforça essa ideia ao estabelecer no art. 3º, inciso I, que o disposto neste decreto “não se aplica aos ativos representativos de valores mobiliários sujeitos ao regime da Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976” e muito menos muda as competências da CVM, conforme consta no art. 3º, inciso II, alínea “a”, do referido decreto.
Quanto a esse ponto, portanto, de um token poder ou não ser interpretado como valor mobiliário, cabível a leitura do Parecer de Orientação nº 40 emitido pela CVM em outubro de 2022. Tal documento prevê a possibilidade de Stablecoins e NFTs (espécies de Ativos Digitais Criptografados) poderem ser interpretados como “Security Tokens”. Esse Parecer da CVM, ainda acabou por definir que não apenas as ICOs seriam interpretadas como Contrato de Investimento Coletivo e que pode haver tokens representativos de ações, debêntures e outras espécies de Valores Mobiliários.
Competências do Banco Central
Compete ao Bacen tratar temas ligados ao Sistema Financeiro Nacional (SFN). Entre essas atribuições estão a emissão de moedas fiduciárias, conforme consta no art. 10 da Lei nº 4.595/1964. Ainda, o art. 164 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 deixou claro que a emissão de moedas fiduciárias é de competência exclusiva dessa Autarquia Especial Federal.
Vale elucidar que além do Conselho Monetário Nacional (CMN) e do Bacen, as instituições financeiras compõem o SFN . E, essas, de acordo com o art. 10, inciso X, da Lei nº 4.595/1964 dependem da autorização do Bacen para atuarem no Brasil.
Compete também ao Bacen a regulamentação sobre o Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB) e isso inclui os arranjos de pagamentos no Brasil. O conteúdo do art. 6º da Lei nº 12.865/2013. Esse dispositivo traz em seus incisos as definições tanto para arranjo de pagamento (inciso I) quanto para as instituições de pagamento (inciso III) que compõem o SPB.
Classifica-se o primeiro como “conjunto de regras e procedimentos que disciplina a prestação de determinado serviço de pagamento ao público aceito por mais de um recebedor, mediante acesso direto pelos usuários finais, pagadores e recebedores”. Já uma instituição de pagamento necessita de ser pessoa jurídica que adira a um ou mais arranjos de pagamento. Ela precisa de ter como atividade principal ou acessória, alternativa ou cumulativamente: converter moeda física ou escritural em moeda eletrônica, ou vice-versa, credenciar a aceitação ou gerir o uso de moeda eletrônica. Há ainda outras funções elencadas nas alíneas trazidas no art. 6º, inciso III, da Lei nº 12.865/2013.
Mas o que isso tem a ver com a regulação de empresas que negociam e custodiam Ativos Digitais Criptografados? A resposta é simples: Tudo.
Bacen regulamentando a Criptoeconomia
A Lei nº 14.478/2023, conforme já mencionado, afastou a sua incidência em que Ativos Digitais Criptografados representem valor de moeda fiduciária. Desta forma, não regula em coisa alguma as CBDCs. Essa Lei também afastou possível confusão com as chamadas moedas eletrônicas e aqui cabe, portanto, um comentário relacionando esta regulação à lei de Sistema de Pagamentos Brasileiros.
O art. 6º, inciso VI, da Lei nº 12.865/2013, menciona que moeda eletrônica são “recursos armazenados em dispositivo ou sistema eletrônico que permitem ao usuário final efetuar transação de pagamento”. Havia confusão entre os termos “moedas virtuais” (associadas aos criptoativos como Bitcoin) e “moedas eletrônicas”, as quais são emitidas por empresas como Google Pay ou PayPal. O Banco Central, portanto, achou por bem, ainda em 2014, expedir o Comunicado nº 25.306/2014 diferenciando tais ativos.
O Bacen afirmou por meio dessa normativa que “as chamadas moedas virtuais” são denominadas como “unidade de conta distinta das moedas emitidas por governos soberanos”.
Por esse motivo, diferentemente das moedas eletrônicas, “não se caracterizam dispositivo ou sistema eletrônico para armazenamento em reais”. Consoante a essa interpretação dada pela autarquia, se deduz que os Ativos Digitais Criptografados não são espécie de arranjo de pagamento e, consequentemente, não integram o SPB.
Bancos autorizados
Por outro lado, independentemente da regulação do Bacen acerca do funcionamento das empresas cripto, o art. 8º da Lei 14.478/2022 deixou claro que os bancos e demais instituições de pagamento autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil podem prestar exclusivamente o chamado “serviço de ativos virtuais ou cumulá-lo com outras atividades”.
Na segunda parte deste dispositivo, há o quesito “na forma da regulamentação a ser editada por órgão ou entidade da Administração Pública federal indicada em ato do Poder Executivo federal”. Esse ponto não parece impedir a atuação das instituições financeiras como prestadores de serviço em Ativos Digitais Criptografados — ou “ativos virtuais”, conforme consta na lei.
Se fosse desta maneira bancos digitais como Nubank não poderiam mais fazer negociação de Bitcoin e Ether ou bancos grandes e tradicionais como o Itaú não estariam prejudicados em dar prosseguimento a projetos em serviços com tais ativos. Aqui não se inclui o caso do banco Inter pelo fato de tratar-se de investimento indireto por meio da B3 Digitas, serviço que mais se assemelha a valores mobiliários.
Regras já em vigor pela regulação
O Bacen ainda não definiu as diretrizes para o funcionamento das empresas que atuam no setor cripto. Isso, porém, não fez com que a Lei nº 14.478/2022 deixasse de vigorar em alguns aspectos. A primeira delas é atinente à proteção ao Consumidor. Todas as operações com Ativos Digitais Criptografados, portanto, devem obedecer no que couber ao disposto no Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990). Outra mudança foi a equiparação de empresas que prestam serviços em Ativos Digitais Criptografados às instituições financeiras nos termos da Lei nº 7.492/1986.
Não obstante, o cometimento de crimes com tais ativos passou a ser tratado de forma mais dura. A Lei nº 14.478/2022 criou um tipo penal para fraudes com tais ativos e inseriu ao Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940) o art. 171-A. Nesse dispositivo consta que quem “Organizar, gerir, ofertar ou distribuir carteiras ou intermediar operações que envolvam ativos virtuais” com o intuito de obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio usando para tanto qualquer forma fraudulenta pode ser punido com pena de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
Vale considerar, portanto, que a pena de reclusão entre 4 e 8 anos, nos termos do art. 33, parágrafo 2º, alínea “b”, do Código Penal, deve ser cumprida inicialmente em regime aberto. Outro ponto é que a regulação trouxe pena cumulativa de multa e não alternativa.
Informações ao COAF
A Lavagem de dinheiro com uso de Ativos Digitais Criptografados também foi preocupação do legislador. A regulação previu o aumento de um terço a dois terços para os crimes definidos na Lei nº 9.613/1998. Basta, portanto, que sejam “cometidos de forma reiterada, por intermédio de organização criminosa ou por meio da utilização de ativo virtual”.
As “prestadoras de serviços de ativos virtuais” ainda terão de manter registro de toda transação em “ativos virtuais” que ultrapassem limite fixado pela autoridade competente. E, consequentemente, informar ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) em 24 horas as operações suspeitas de crime de lavagem de dinheiro. E isso tudo sem que haja conhecimento da pessoa que fez a transação, nos termos da Lei nº 14.478/2022.
[1] BRANCO, Luiza Szczerbacki Castello; GIORDANO, Gabriel B. Pillar; SOUZA, Alexandre Magno Antunes de. Marco de Regulação de Ativos Digitais Criptografados no Brasil e o Direito Administrativo Global. In.: SADDY, André (Coord.). Direito Administrativo Cosmopolita. Rio de Janeiro: CEEJ, 2023.
Fonte: https://livecoins.com.br/ativos-digitais-criptografados-o-que-mudou-com-a-regulacao-no-brasil/